Papoula Elisa

Passando por essa rua calma e linda, me lembro de uma vez que estive aqui quando ainda era menino. A rua estava tão calma como agora, a cidade ainda dormia e uma garoa caía de leve. Bem de levezinho. O tempo estava fresco e não frio e os pássaros estavam a cantar nas árvores, e as árvores estavam tão belas que eu podia sentir o ar puro que exalavam. Eu estava de férias da escola e a última coisa que eu queria era dormir até tarde. Queria aproveitar as coisas que eu não podia quando tinha aula, eu estudava de manhã e por isso nunca caminhava cedo. Mas nesse dia decidi que iria ficar um tempo caminhando e observando a linda cidade em que morava. Bem, na verdade não caminhando mesmo, andando de bicicleta. Eu quase nem sabia o que era andar a pé.
Então eu estava andando de bicicleta, despreocupado. O silêncio me acompanhando, as árvores molhadas me saldando. Era a sensação que eu tinha, de que eu era bem vindo a estar com a natureza num momento que seria apenas dela. Sentia que não fazia parte da cidade mais do que ela fazia parte de mim. É como eu sempre dizia: "Mamãe, eu me sinto privilegiado por nascer e crescer aqui." Eu pedalava e pensava nessas coisas, e olhava as borboletas, e a garoa caía, caía... tão serena...
Passei a pedalar mais devagar. Parei. Tinha avistado uma flor que achei muito bonita. Era uma papoula rosa, flor comum, mas estava sozinha no meio de tanto verde. Isso me chamou a atenção. Cheguei perto, olhei. Estava cheia de gotinhas de chuva. Estranhei encontrar uma papoula sozinha. Essas flores não são como as rosas ou as tulipas, elas não gostam de ficar sozinhas. "Vou arrancar", pensei. "Você ficaria muito bela em um vasinho." Mas não arranquei de imediato, fiquei observando o quando aquela flor se destacava sozinha. "Talvez você nem chamaria minha atenção se estivesse no meio de tantas outras papoulas. Será que eu devo mesmo levar você comigo?" Estava a pensar e a observar a flor.
"Você gosta de flores?", alguém me perguntou. Era uma voz doce de menina. Olhei e vi que do meu lado havia uma menina sorridente e linda, com um vestido branco delicado e uma sombrinha branca daquelas que parecem de bonecas. "Gosto sim, são bonitas", respondi meio trêmulo. Ela sorria tão naturalmente, um lindo sorriso. Não, ela não estava assustada como eu. Nem um pouco. "Eu também gosto das flores, elas são minhas amigas. Essa aqui" disse a menina, tocando a papoula "se chama Elisa. Eu a conheço há algum tempo. Sempre venho de manhã conversar com ela." Era de uma doçura inigual aquela menina. Devia ser mais nova que eu, pouquinho mais nova. Eu não sabia o que dizer a ela, estava meio paralisado. Nunca a tinha visto antes e era a mais bela menina que eu já vira. "Você parece um lobinho", ela disse, dando pequenas gargalhadas. "Você parece uma boneca de porcelana. É bela." respondi, me sentido menos tímido. E ela parecia mesmo uma boneca de porcelana, tão delicada que era. "Você me lembra os lobinhos pequeninos. Eles são assim que nem você, tímidos. Não chegam perto. Mas acabam sendo meus amiguinhos depois." ela disse. "Você gosta de lobos, não é?", perguntei. "Sim, eles são tão bonitinhos e fofinhos. Mas quando crescem passam a ser tão solitários..." ela hesitou um pouco e continuou "Você me promete que não será solitário quando crescer?". Ela parecia estar preocupada comigo. Respondi: "Prometo." Ela devia estar pensando que eu era um menino lobo talvez. "Como você se chama?" ela perguntou. "Gabriel, e você?" perguntei a ela. "Me chamo Samara." ela sorriu e continuou "Você se importa em me dizer seu sobrenome?". Não, eu não me importava nem um pouco. "Wolf", respondi. Com a minha resposta ela deu uma pequenininha gargalhada. "Meu sobrenome é Blosson", ela me contou. Eu não entendi o motivo dela sorrir pelos sobrenomes. Dava muita importância a isso. "Sabe Gabriel, um dia você vai entender o quanto nossos sobrenomes têm a ver conosco. Em especial, eu e você." Ela disse, como um anjo. Eu sorri para ela, e disse: "Eu ia arrancar essa papola, quero dizer, a Elisa. Achei que ela estivesse sozinha, mas não está não. Vou deixar ela aqui pra você." Samara sorriu. "Muito obrigada. Você é muito genti." Me deu um beijinho no rosto. Eu devo ter corado. Era meu primeiro beijinho na bochecha que não fosse de minha mãe ou minhas tias. "Eu quero te dar uma coisa" disse ela, tirando uma flor seca de dentro uma pequena bolsinha. "Tome, quero que guarde dentro de um livro ou carderno que seja muito especial pra você." Disse, me entregando a flor seca. Eu peguei e fechei minhas mãos para proteger meu lindo presente. "Eu também tenho uma coisa pra você, Samara", eu disse. Dei a ela uma folha seca cor de azeite. Uma folha que eu guardava há muito tempo e que era muito especial. "Quero que cuide dela como se fosse algo precioso." disse. Samara colocou a mãozinha na minha bochecha e me disse: "Gabriel, essa folha é sim algo muito precioso. Não é preciosa para o mundo, mas é preciosa para nós e é isso que temos de melhor." Achei muito bonitas sua palavras. Peguei a pequena mão da Samara em minhas mãos e disse a ela, olhando nos olhos: "Você não vai me esquecer, não é?" "Não, nem você vai me esquecer também.", ela me disse. Foi um momento muito bonito. "Sinto, Gabriel, que este seja o momento de você partir", a Samara disse. "Não quero que você vá, mas é o que tem de fazer, não é?" continuou. Era sim, eu tinha que ir embora. Já estava ficando tarde. E os olhos de Samara estavam ficando tristes por eu ter de partir. Eu segurei suas mãos outra vez e disse, firme: "Samara, eu voltarei aqui todos os dias pra te encontrar. Eu prometo." Samara me deu um lindo sorriso, mas com um olhar tão distante. Um olhar que naquela época não teve tanto significado pra mim, mas que hoje eu entendo bem. Era um olhar de adeus.
Voltei naquele mesmo lugar durante anos e anos, e ela nunca esteve lá novamente. Era tão vazio. Mas a Elisa estava lá. Passei a conversar com ela, às vezes imaginando que fosse a Samara. Sonhei com o dia que Samara voltaria pra mim, e pra Elisa. Mas nunca esse momento existiu. Me lembro que naquele dia montei na minha bicicleta e fui pedalando olhando para Samara até não poder mais vê-la. E essa é a última memória que tenho dela: uma menina pequenina para de pé olhando para mim, sorrindo me dando tchau. Agora entendo também que meu sobrenome Wolf significa lobo e Blosson, o sobrenome de Samara, significa flor. Ela sabia disso.
E hoje, depois de tantos anos, aqui nesse mesmo lugar, olhando para onde a Elisa costuma ficar, não penso na tristeza de ter perdido Samara, mas sim na alegria de tê-la conhecido.
"Meu pequeno lobo", ouvi algupem dizer. Logo hoje e aqui neste lugar que é só meu e da Samara, quem poderia ser? Espere, é uma linda moça segurando a Elisa.
Samara!!!